Das reflexões sobre a morte.
Há dias que, mesmo que não os valorizes, se tornam incontornáveis. O 15.08 é, de há sete anos para cá, um deles. Por muito que não fizesse parte da minha memória, uma frase de uma tia, e o ter estado com a minha mãe pela noite fizeram com que percebesse que o dia seguinte seria mesmo o dia em que, há 7 anos, o meu pai tinha partido.
Tinha combinado ir a uma caminhada pelo Gerês, e perder-me por entre o seu verde e azul, mas cancelei tudo à última hora. Senti que não poderia ter um dia voltado para dentro, quando a minha mãe teria um dia pesado e repleto de memórias menos positiva. E, pela manhã, lá fomos com o grupo CVP, fazendo 74.5kms a muito custo.
Durante o caminho, enquanto pedalava, lembrava-me de todas as vezes que tinha feito algo do género com o meu Pai. De como os treinos custavam menos, com ele por perto. De como havia um desafio constante de superação, mas ao mesmo tempo um espírito de grupo, de unidade, de partilha. De como ele, mesmo que eventualmente fosse mais rápido, voltava sempre para trás para se assegurar que ninguém tinha ficado, que todos estávamos bem.
Tal foi algo que eu sempre fiz, e que quando penso foi muito inspirado pelo que via. Naquela manhã, e como sempre, seguia na cauda do pelotão, de modo a certificar-me que ninguém ficava para trás. Consigo ver todo o pelotão, e ao mesmo tempo observar as pequenas coisas que me rodeiam. Foi assim que consegui apreciar algo que se tornou o momento mais bonito daquela manhã. Temos alguém no grupo sobre quem escreverei noutra altura, mas que é um herói moderno, e um exemplo lindíssimo de superação. Naquele dia, o P., seu filho, tantas vezes parou ou abrandou para perceber se o seu pai vinha bem. Muitas vezes nada era dito, havia apenas um olhar que tudo dava a entender. E, se o pai ia bem, o filho também podia ir bem. Quantas vezes, ao vê-lo, consegui ver o meu pai a fazer o mesmo, e a voltar atrás a ver se eu estava bem. Quantas vezes isso era mais importante do que o próprio treino.
No regresso, parei com a minha mãe num restaurante de fast-food. Estávamos cansados. Física, mas também emocionalmente. Foi a refeição mais inesperada que consegui imaginar, e foi por isso uma dinâmica diferente, divertida, leve. Chegamos a casa com um sorriso.
Passei a tarde mergulhado em memórias e pequenas coisas. Lembro-me, há 7 anos, ter regressado aos EUA, depois de ter perdido 3 semanas de aulas, a sentir-me vazio. As 3 semanas cá passadas a enterrar o meu pai e a tratar de toda a burocracia seguinte pareciam um quadro borratado, em que tudo foi vivido a um ritmo alucinante e nada era claro. Uma série de acontecimentos dos quais não tenho memória.
Lembro-me de, já regressado, não dizer nada a ninguém sobre o que se tinha passado. Queria que os próximos meses fossem soltos, que não olhassem para mim de forma diferente, que não me tratassem como alguém que tinha acabado de passar por algo tão delicado. Lembro-me de reintegrar as aulas, e da universidade dizer que talvez não valesse a pena, por ter perdido tanta matéria. Os meses lá passados passaram de forma alucinante. No final, o plano de lá continuar e terminar o doutoramento tinha mudado imenso. Não estava bem, e não podia continuar num caminho que não sentia ser o correcto. Tinha de ser capaz de cuidar de mim, ou arriscava partir. E não podia partir. Pela família.
Quando cheguei a Timor, fui eventualmente destacado para o distrito mais remoto (o que eu queria). Um pequeno enclave chamado Oecusse, acessível apenas por uma viagem de ferry de 12h, que acontecia apenas 2x por semana, ou por helicóptero. Estava longe de tudo e todos. Por opção, decidi não viver com os meus colegas ONU, e perguntei às irmãs Dominicanas responsáveis por um orfanato local se haveria hipótese de lá ficar com elas. Assim o fiz. E lá fiquei.
Lembro-me de perguntar a algumas irmãs as histórias de vida das miúdas. E, a cada dia, fui sabendo cada vez mais de cada uma daquelas tão maravilhosas miúdas. Parei, no entanto. Percebi que as histórias, tão horríveis, mexiam imenso comigo. Que deixaria eventualmente de olhar para as miúdas como apenas miúdas, mas como vítimas. Que a nossa ligação ficaria distorcida.
O que sabia eu da dor, mesmo? Tinha perdido o meu pai e o meu avô, logo de seguida, em circunstâncias trágicas. Mas que dor era esta? O que justificaria ela, até que ponto me levaria? Deveria encolher os ombros e ignorá-la? Poderia eu cair numa cama e de lá não sair durante meses, até conseguir lidar com tudo?
E aquelas miúdas? A que sentiu o pai ser alvejado enquanto corria com ela nos braços? A que ficou soterrada pela sua própria família, depois dos soldados indonésios os terem posto num poço e disparado sobre eles? Seria a dor delas maior? Mais válida? Mais real? Não sabia. Não percebia.
A dor que sinto, por enorme que seja, é minha. Não é comparável. Não é maior nem menor. A dor que trazemos, só nós sabemos. Devemos valorizá-la por isso. Devemos cuidá-la por isso. Nada sabemos da dor dos outros, e é precisamente por isso que devemos apostar sempre na delicadeza como forma de estar. O único meio de comparação é o como nós achamos que reagiríamos a determinada situação, sem fazer a mais pequena ideia da profundidade ou dureza da dor do outro. Comparamos feridas externas, e internas. Se dói ao outro, certamente doerá menos do que a mim, porque eu é que passei por situação x e y. Porque a dor do próprio é mais válida do que a dor do outro, quando ambas são igualmente duras, ainda que advenham de situações completamente diferentes. Mas é aqui que nos ligamos. Nesta partilha. Neste algo, tão imensurável, mas tão real.
Os piores momentos não acontecem de dia, mas sempre de noite. É no silêncio e na escuridão que melhor vemos, que mais sentimos. Os monstros que em pequenos não deixavam que dormíssemos descansados não são imaginários, nem são externos. São bem reais, e estão bem cá dentro. Sentes mais. Dói mais. Lembras-te do que tornou no que és. Das pessoas e momentos que partiram algo em ti. De quando foste tu a partir algo em alguém. Da alegria, da dor, do saudosismo. Do que te fazia bem e perdeste. Do que te fazia mal e ainda continua contigo.
As memórias não se tornam melhores, ou mais fáceis. Continuam a apertar algo em ti, continuam a fazer com que percebas exactamente o que perdeste, o que te afectou. E isso magoa, sempre. As experiências negativas acumularam-se, e continuarão a acumular-se. Teremos, cada vez mais, nódoas e feridas dentro de nós.
O tempo nada cura. O buraco continua lá. Os cheiros continuam lá. Os sons. Os toques. As particularidades. E, a cada dia, a saudade aumenta. Os mortos da minha vida estão cada vez mais presentes no meu dia a dia. E isso é um motivo de felicidade, acima de tudo. Porque continuam comigo. Porque continuam importantes. Porque continuam vivos.
A S., em Abril, disse-me: ‘gosto muito da maneira como vês as pessoas à tua volta e de não deixares que te tirem isso’. Isso, ainda hoje, me aquece o coração, e essa forma de estar é algo que não quero nem posso nunca perder. É por isso que, mesmo escrevendo isto às 5h47, e no meio de mais uma noite mal dormida, consigo encontrar algum equilíbrio. Só depois de partirmos é que sabemos quem somos. Só aí nos encontramos. Só aí amamos. E só aí conseguimos mudar o mundo à nossa volta.
Que cuidemos da dor, da nossa e dos outros. Que nos aproximemos. Que sejamos melhores. Que nunca deixemos ninguém para trás.
14.08.2018