Das paredes e escuridão.
São 5.16. As paredes olham-me, por entre a escuridão. Não me mexo, mas sinto imenso a agitar-se, cá dentro.
A M ontem perguntou-me porque não consigo desligar-me do que me rodeia. Porque não deixava o trabalho no trabalho. A casa em casa. E como isso não seria compatível com a minha necessidade de liberdade. Não poderia continuar a envolver-me por inteiro. Eu explicava que era incapaz de fazer essa distinção. O eu pessoal, profissional, em lazer, em coisas light ou coisas sérias, tudo estava ligado. Sou incapaz de sair às 17h e desligar, até às 9 do dia seguinte, esquecendo tudo o que se passou. Sou incapaz de viver algo e de o varrer para debaixo do tapete, como se não o tivesse feito. O que vivo e partilho com outros fica comigo, sempre.
Isso deixa-me, muitas vezes, perturbado. Nestas últimas semanas, tenho sentido que há uma tempestade emocional que me segue de forma quase constante. Não por haver aqui qualquer complexo de messias ou de salvador, que não há. Não há qualquer crença desadequada de que tenho de, ou que vou salvar o mundo. Estou perfeitamente ciente da minha insignificância, da insignificância de qualquer um de nós. Mas é precisamente por isso que não consigo desligar-me e ficar indiferente. Se há uma desagregação tão grande na sociedade, isso deveria aproximar-nos cada vez mais. Deveria fazer com que priorizássemos o que sentimos, e que o partilhássemos. Essa nossa insignificância deveria ser o vento que nos permite continuar no nosso caminho, e que nos abre mais portas.
Por entre as muitas viagens e muitas aventuras, as mais bonitas foram em comunidades onde não tínhamos nada. Não havia ricos ou poderosos ou elites. Apenas pessoas, que se olhavam olhos nos olhos, e que partilhavam tendo como ponto de partida a sua condição semelhante. O bem não era algo individual. Era de todos. E, por muito delicada e frágil que pudesse ser a nossa situação, ninguém ficava para trás. Não tínhamos nada para partilhar, e por isso partilhávamos tudo. E eu sempre acreditei nessa partilha e no seu poder. No encontrar algo de bonito e positivo, mesmo em situações que partem algo cá dentro. No grupo. Na comunidade.
E sinto, muitas vezes, aqui no Porto, que vivo entre essas dualidades. O ser super sensível e ao mesmo tempo sentir-me anestesiado. O sentir-me ligado a tudo, mas ao mesmo tempo não conseguir ligar-me a nada. O sentir-me insignificante na terra, mas trazer mais peso do que todo o universo. Imensos indivíduos, tantas partilhas que vão tão lá ao fundo e arrepiam a alma, e ao mesmo tempo vagueio as ruas sem sentir que há um grupo. Há imensas pequenas peças, em constante movimento, mas elas não se ligam e criam algo maior. Há uma desestrutura.
Tudo isto torna-se ainda mais complexo quando olho para trás, e penso no quanto a minha história é diferente dos me rodeiam. Nas tantas aventuras e desventuras que nunca foram partilhadas, no tanto que não consigo ainda compreender. E, enquanto não o fizer, nem eu estarei apto para uma vida em comunidade. Enfrentar o que trazemos cá dentro é a maior odisseia da nossa vida, nenhuma batalha pode sequer comparar-se a tal. Perceber o que sentimos, porque o sentimos, toda esta inconstância por entre a previsibilidade do mundo. E, acima de tudo, não ser derrotado por isso.
Ninguém precisa de soluções na sua vida. Não se esperam milagres, ou qualquer acto revolucionário. Quando temos um problema ou obstáculo, o importante é acreditarmos que conseguimos superá-lo, independentemente do quando o conseguimos, ou mesmo se o conseguimos. É essa fé que nos empurra – mas essa fé nem sempre existe, e é por isso que há uma necessidade moral de estarmos alerta para tal. Para percebermos que a pessoa que está sentada no banco ao nosso lado, por muito alegre que possa parecer, traz também consigo algo que magoa. Algo de que nem sempre se lembra, mas que volta e meia volta para a assombrar. E mesmo quando consegue derrotá-lo, surgirá eventualmente um outro qualquer motivo que trará uma nova dor, num ciclo que será interminável. Não vamos conseguir fazer nada para que isso mude ou desapareça, mas vamos fazer com que ela sinta que há alguém que está lá, e se preocupa. Que, independentemente da dificuldade, há alguém que a ouve, que a compreende, que acredita nela. Que lhe dá a mão. Que há amor. Que há esperança.
09.06.2018