Uma morte de sonho.

“Às vezes penso em suicidar-me. Quero ter uma morte de sonho, que seja como eu quero”.

Foi com toda a naturalidade e tranquilidade que o C me disse estas frases, enquanto me olhava nos olhos. Falávamos há mais de 1h. Contou-me as suas últimas aventuras e desventuras. O que teve e deixou de ter. O que quis e deixou de querer. Os trabalhos, a separação, a família desintegrada. As mortes. A solidão. Disse-me como isso o atormentava mas, “se um gajo não se desliga de certas cenas, não consegue dormir à noite”.

“E o que lhe disseste, num momento como esse?”, perguntou-me a M mais tarde. Nem sei bem o que disse. Há altura em que não precisamos que nos digam nada, apenas que nos ouçam. Mas lembro-me de dar-lhe um abraço. E sentir uns braços à nossa volta pode muitas vezes mudar a nossa vida.

Lembro-me de ficar parado, durante largos minutos, após a nossa conversa. De sentir um turbilhão de emoções a invadir-me, de forma lenta mas arrebatadora. Ali tinha estado, em conversa com alguém que era tão diferente de mim, mas com quem partilhava tanto. Alguém que podia ser meu pai, a dizer-me que não via motivos para continuar esta caminhada da vida.

Percebi, mais tarde durante o dia, que o A. Bourdain terá decidido terminar a sua caminhada, também. Quando alguém falou comigo sobre isso, disse-me que não percebia o que o tinha levado a dar um passo tão final. Fama, sucesso, dinheiro, ele tinha tudo o que um comum mortal poderia desejar. Fiquei em silêncio. Quanto mais velho fico, mais percebo que nada percebemos da experiência humana. Estas sociedades tão desconexas em que deixamos tantos para trás, e em que assumimos que temos patamares que nos tornam diferentes, apenas porque uns têm mais dinheiro e poder do que os outros. Descuramos o facto de que todos somos seres extremamente complexos, e que essa gestão emocional nem sempre é fácil quando não nos sentimos ligados ao que nos rodeiam.

Pelo fim do dia, depois de ter comprado uma antologia de um dos meus favoritos, e enquanto sentado num banco de jardim a divagar sobre o que sentia bem lá no fundo, observava quem passava. Um miúdo tão entretido a comer o seu algodão doce que nem via o pai a estender-lhe a mão para atravessarem a rua. A rapariga da barraca de uns doces, com um ar aborrecido, que a seu lado tinha um carro de bebé com o miúdo a dormir. A senhora sentada num banco, que impacientemente esperava alguém que não chegava. O homem com ar cansado com o seu boné do FCP que caiu quando passava ao meu lado. A rapariga da minha idade, que eu conhecia, que passou ao longe. Eu sabia que ela não tem qualquer família nem qualquer recurso financeiro. Caminhava simplesmente à volta do jardim, à espera que o tempo passasse.

Tanta gente rodeada de diversões e música. Tanta gente, alienada de quem os rodeava, a experienciá-lo sozinho.

Saltei na moto, e meti-me na VCI. A minha respiração estava acelerada. Sentia-me inquieto. Pensei no quão fácil seria, caso quisesse terminar com tudo – bastaria fechar os olhos por uns segundos e manter a mão no acelerador. Mas o que resolveria isso? Poderia eu, alguma vez, desistir de tudo? 

Acreditei, durante muitos anos, que o suicídio era um acto cobarde. Que era uma fuga que nada resolvia. Mas percebo hoje, acima de tudo, que essa uma opinião ignorante de um puto que nada sabia da vida. Podemos dizer que todos temos opções – mas essas opções só existem e podem ser tomadas por quem sente que as tem. Quando alguém está no fundo do poço e só vê escuridão, a luz não é uma opção. A pessoa afunda-se cada vez mais nessa escuridão, e essa escuridão torna-se em tudo o que se conhece. E, numa sociedade em que é tão fácil sentir que todos olhamos em direções diferentes, torna-se ainda mais difícil partilhar uma visão comum, uma visão integrada, uma visão que não deixe ninguém para trás.

Decidi ficar em casa, pela noite, mergulhado em palavras. De outros e minhas. Decidi ter uma noite bem mais desconfortável do que teria, caso tivesse decidido sair, mas não queria estar com pessoas e não estar lá. A nossa dor, que é só nossa, ninguém a percebe. Nem nós próprios a percebemos, na grande maior parte das vezes – mas urge que o tentemos fazer. Não me lembro da última vez em que consegui dormir uma noite sem sobressaltos, e sem acordar cansado. Não me lembro da última vez que me senti em paz. Não me lembro da última vez que me senti livre. Sinto um conjunto de emoções que não sei de onde aparece, como aparece, ou para onde vai. Mas, de uma forma ou de outra, com maior ou menor eficácia, consigo controlar tudo isso. É no meio de toda essa escuridão que vou encontrando a minha própria humanidade, humanidade essa que faz com que seja capaz de abrir os meus braços e abraçar o próximo. Sem barreiras, sem entraves, sem perguntas, sem julgamentos. Com amor e compreensão, apenas.

08.06.2018

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