Leva os discos. Pensa em mim, quando os ouvires.

“Leva os discos. Pensa em mim, quando os ouvires”.

Senti o coração a apertar. Como se estivesse a saquear alguém que estava ali ao meu lado. A levar algo que não me pertencia. Ali estávamos. 3 pessoas a quem a morte de alguém próximo tinha mudado radicalmente a sua vida. Todos, de algum modo, partidos. Eu limitei-me a soltar um sorriso tímido, e acenei com a cabeça. Levei apenas parte dos discos. Queria ter mais uma parte de si comigo, no futuro.

Escrevo isto às 5h37, depois de ter sonhado com o meu Pai. Sei o porquê – uma aparente insignificância, em que ontem comi algo que sei que ele gostaria de comer. Lembrei-me dele, e adormeci com ele ao meu lado. Há sempre algo cá dentro que torce imenso, quando isso acontece. Acordas triste. Estás desperto, mas dormente. É quase como uma parte de ti estivesse anestesiada; como se doesse, mas de algum modo já estivesses habituado a essa dor. Dói, mas não sangras da mesma forma. 

“O que se passa, Nuno? Estás triste. Já não pareces o Nuno de antigamente, que tinha tanta vitalidade e alegria”.

A M. perguntou-me isto, enquanto me olhava nos olhos. Eu, sentado no sofá de uma casa onde tenho tantas memórias, e tão bonitas, baixei a cabeça, e disse que não era o mesmo Nuno de outros tempos. Esse talvez tenha sido o maior desafio destes últimos anos – o tentar perceber como se continua a avançar, mesmo depois de perdas que são incuráveis e inultrapassáveis. Perceber que, na vida, nascemos e crescemos a sermos suportados por vários braços, mas, com o tempo, estes braços vão deixando de estar lá. Tornas-te um individuo autónomo, em teoria com capacidade para tomares as tuas próprias decisões. Mas, na maior parte do tempo, continuas a sentir-te incapaz de fazê-lo daquela forma tão clara e focada que estas pessoas faziam. Duvidas de ti.

E, no meio de tudo, sentes-te triste. 

Há um quase isolamento progressivo, muitas vezes não desejado. Uma pessoa desagrega-se, e vai sangrando cada vez mais, sem perceber como estancar a hemorragia. E, mesmo que essa hemorragia não a mate, incapacita-a de uma forma que muitas vezes nem compreendes. 

Sempre ouvi que o pior da morte era ficares sem a pessoa, mas sinto precisamente o contrário. Os mortos da minha vida estão, hoje, ainda mais vivos e presentes no meu dia a dia. És quase colonizado. Por muito que os amasses em vida, por muito que partilhasses com eles, a morte vai ampliar ainda mais o espaço que ocupam em ti. Alguns sons são deles. Algumas comidas, alguns lugares, algumas rotinas, algumas frases, algumas experiências. Ouves mais a sua voz. Sentes mais a sua presença. Tens mais vezes a sua companhia. O que quer que tenhas partilhado com essa pessoa é agora sempre relembrado nas mais pequenas e triviais coisas, até. E, se por um lado sentes sempre algo a apertar, quando experiencias um destes momentos acima, ao mesmo tempo sorris por sentires a pessoa ainda tão presente e tão contigo. 

Mas como te adaptas depois de perderes uma parte essencial de ti? A tua vida seria tão diferente se perdesses uma perna, e isso toda a gente compreende. Uma perna não volta nunca a crescer. A ferida pode fechar, e tu podes encontrar novas formas de locomoção, mas a tua mobilidade jamais será a mesma de outros tempos. Mas quando perdes algo ou alguém, a nível emocional, espera-se que continues exatamente da mesma forma. Como se fosse algo que dói, mas cura, e segues em frente. Há, no entanto, feridas que o tempo não cura - e estas feridas emocionais são bem mais incapacitantes. 

Há um vazio que se instala, e talvez não percebas porque deves continuar a seguir em frente nem o que te motiva. Percebes que uma vida sem outros é oca. E não estás deprimido, não te tornas incapaz. Tens apenas menos alegria em ti. Sentes muito mais, sentindo muito menos vezes. Não perdeste a capacidade de estar feliz, mas isso não acontece com tanta regularidade. Tal como uma bateria de um telefone que é carregada vezes infinitas, continuas a funcionar, mas não consegues voltar aos 100% de outros tempos. O tempo, o uso, as experiências, desgastam-te, tornam-te um pouco mais moroso e pesado, tiram-te espaço para continuares a acumular coisas. Nem sempre consegues ir tão longe ou carregar tanto peso. E precisas, muito mais frequentemente, de estar no teu espaço, a fazer (ou não fazer) algo que faz com que alguma da cor volte. Estás isolado dos outros, mas mais próximo de ti e de tudo o resto. Estás tranquilo e em paz.

É por isso que guardo tantas coisas de tanta gente. Porque gosto de senti-los próximos. Ouvirei os discos, como continuarei a usar determinadas peças de roupa que perceberam ao A. ou ao meu pai. Porque, assim, estão comigo. Por isso revejo fotos, releio pequenas coisas, olho para determinadas peças que pertenciam a alguém. Deixas de, em momentos, viver a vida, para reviver a vida. Fechas os olhos e, na tua cabeça, partes nas mais variadas aventuras, que te aquecem e quebram o coração. Vives rodeado de fotos, de objetos, de memórias. O frio de um lugar vazio é substituído por uma aura estranhamente quente e reconfortante.

Tantas aventuras que foram vividas, numa manhã tão chuvosa. 

Abres os olhos. Nada do que viveste foi real. 

Respiras, muito pausadamente, fundo. Sentes uma lágrima a cair-te pela cara. 

Estás vivo. E que bênção que isso é. 

25.08.19 + 04.01.20 + 01.02.20

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Of the normality of loneliness.